07 novembro, 2009

Liberdade de expressão

A forma contundente como José Saramago se exprimiu no lançamento do livro “Caim” gerou uma grande polémica. A igreja católica sente-se agredida, mas será que as declarações de Saramago e o conteúdo do livro (ainda não o li) ofendem assim tanto a igreja católica? Será que um ateu consegue com a suas ideias sobre um livro religioso ofender qualquer religião que seja?


Como admirador das obras de Saramago, tenho acompanhado toda esta polémica, há um grande numero de pessoas a pensar que Saramago utiliza a igreja católica para fazer a divulgação e markting comercial desta sua obra, será? Ou é a igreja que está a aproveitar toda esta mediatização, para fazer passar a mensagem, que não é o texto literal bíblico que conta, mas sim as várias interpretações que os teólogos fazem dos textos da bíblia? Claro conforme as conveniências. Se a bíblia é o livro sagrado, no que é sagrado não se toca.

Já li a bíblia completa mais que uma vez, tentei encontrar algo que me fizesse acreditar, o efeito foi contrário o pouco que acreditava esvaneceu-se desapareceu.

Há na bíblia uma quantidade enorme de relatos a castigos aplicados a quem vai contra os desígnios para a qual a bíblia foi escrita.

Até hoje ainda nada conseguiu comprovar que deus existe, mas se existisse e se executou e ordenou tantas calamidades , pragas ,castigos ,banhos de sangue etc. então não o vejo com os mesmos olhos daqueles que apregoam a sua bondade.

Quanto á igreja que olhe para dentro dela mesmo…as cruzadas, a santa inquisição, o luxo em que vive apregoando aos crentes a pobreza como um dom de deus, os nascimentos indesejados ou com malformações, só porque teimam em não aceitar o aborto, quando se sabe que é uma prática usada em conventos de freiras, os sem conta de casos pedófilos no seio da igreja, inclusive nas mais altas patentes da mesma e até o simples uso de preservativos, forma preventiva de transmissão de doenças não é aceite pela igreja.

Por tudo isto, concordo em pleno com Saramago quando disse:”O deus da bíblia é rancoroso, vingativo e má pessoa."

Houve, há e haverá cada vez mais gente a pensar assim.



Aqui deixo este poema escrito por Fernando Pessoa no seu heterónimo Alberto Caeiro.



Alberto Caeiro in "Guardador de rebanhos"



VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera



Num meio-dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.



Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!



Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.



Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas pelas estradas

Que vão em ranchos

com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.



A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.



Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou -

"Se é que ele as criou, do que duvido" -

"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres."

E depois, cansados de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

e eu levo-o ao colo para casa.