A forma contundente como José Saramago se exprimiu no lançamento do livro “Caim” gerou uma grande polémica. A igreja católica sente-se agredida, mas será que as declarações de Saramago e o conteúdo do livro (ainda não o li) ofendem assim tanto a igreja católica? Será que um ateu consegue com a suas ideias sobre um livro religioso ofender qualquer religião que seja?
Como admirador das obras de Saramago, tenho acompanhado toda esta polémica, há um grande numero de pessoas a pensar que Saramago utiliza a igreja católica para fazer a divulgação e markting comercial desta sua obra, será? Ou é a igreja que está a aproveitar toda esta mediatização, para fazer passar a mensagem, que não é o texto literal bíblico que conta, mas sim as várias interpretações que os teólogos fazem dos textos da bíblia? Claro conforme as conveniências. Se a bíblia é o livro sagrado, no que é sagrado não se toca.
Já li a bíblia completa mais que uma vez, tentei encontrar algo que me fizesse acreditar, o efeito foi contrário o pouco que acreditava esvaneceu-se desapareceu.
Há na bíblia uma quantidade enorme de relatos a castigos aplicados a quem vai contra os desígnios para a qual a bíblia foi escrita.
Até hoje ainda nada conseguiu comprovar que deus existe, mas se existisse e se executou e ordenou tantas calamidades , pragas ,castigos ,banhos de sangue etc. então não o vejo com os mesmos olhos daqueles que apregoam a sua bondade.
Quanto á igreja que olhe para dentro dela mesmo…as cruzadas, a santa inquisição, o luxo em que vive apregoando aos crentes a pobreza como um dom de deus, os nascimentos indesejados ou com malformações, só porque teimam em não aceitar o aborto, quando se sabe que é uma prática usada em conventos de freiras, os sem conta de casos pedófilos no seio da igreja, inclusive nas mais altas patentes da mesma e até o simples uso de preservativos, forma preventiva de transmissão de doenças não é aceite pela igreja.
Por tudo isto, concordo em pleno com Saramago quando disse:”O deus da bíblia é rancoroso, vingativo e má pessoa."
Houve, há e haverá cada vez mais gente a pensar assim.
Aqui deixo este poema escrito por Fernando Pessoa no seu heterónimo Alberto Caeiro.
Alberto Caeiro in "Guardador de rebanhos"
VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.